Se no Manifesto Comunista a teoria aparece de maneira geral, neste texto de Marx ela se debruça sobre um ciclo específico de acontecimentos, buscando mostrar a engrenagem real por trás dos fatos políticos: a economia. O que se vê não é o acaso da história, mas a manifestação visível de causas estruturais, de forças que atuam por baixo da superfície. Analisar a história no calor dos fatos é tarefa ingrata. Mesmo hoje, com acesso facilitado a dados e estatísticas, é difícil traçar um panorama econômico completo de um período específico. Os fatores se sobrepõem, interagem, mudam rapidamente, e os mais decisivos muitas vezes operam em silêncio, tornando-se visíveis só depois que seus efeitos explodem. Assim, é comum que as análises precisem assumir como constantes certas condições econômicas ou apenas considerar as transformações mais evidentes. Isso não é defeito do método materialista, mas limitação imposta pelo próprio tempo histórico em que se escreve.
Ao escrever sobre os anos de 1848 a 1850, Marx o faz num contexto de exílio e escassez de informações, mas com profunda compreensão da realidade política e econômica da França. A Revolução de Fevereiro e os desdobramentos que se seguiram foram abordados com precisão impressionante. Ainda que com lacunas materiais, a análise mostrou uma conexão coerente e profunda entre os acontecimentos, provando a validade do método.
Essa interpretação recebeu sua primeira confirmação quando Marx, em 1850, teve a oportunidade de aprofundar seus estudos econômicos. Constatou que a crise comercial de 1847 foi o estopim das revoluções que se espalharam por toda a Europa. E quando a economia voltou a crescer em 1849, a reação conservadora também se fortaleceu. Essa constatação levou a uma revisão crítica do entusiasmo revolucionário. A luta ainda estava viva, mas seria longa. O retorno à estabilidade econômica não significava a derrota definitiva, mas um novo compasso da luta de classes.
A segunda prova da análise de Marx veio com o golpe de Estado de Louis Bonaparte, em 1851. Ao recontar a história recente no 18 de Brumário, Marx reviu o mesmo período com a perspectiva do desfecho político. E mesmo assim, sua análise anterior permaneceu praticamente intacta. O essencial não mudou. O texto de 1850 já havia captado os elementos decisivos.
Mais do que uma leitura correta dos fatos, esse texto tem uma importância histórica: nele aparece, pela primeira vez, a fórmula que resume a luta dos trabalhadores de todo o mundo, a apropriação dos meios de produção pela sociedade. Por trás do direito ao trabalho está o controle sobre o capital, e por trás disso, a abolição do trabalho assalariado. Essa ideia, simples em aparência, representa uma ruptura com todas as formas anteriores de socialismo. Rompe com os devaneios utópicos e com os paliativos reformistas, apontando para uma transformação radical da sociedade.
Em 1848, todos acreditávamos que o novo levante anunciava a hora da revolução socialista. A lembrança de 1789, 1830 e 1840 ainda era forte. O povo de Paris erguia barricadas e, rapidamente, as insurreições se espalhavam por Viena, Milão, Berlim. Parecia o início do desfecho. Mas mesmo com batalhas como a de junho, entre burguesia e proletariado, a história nos mostraria que ainda estávamos no começo do processo.
Ao contrário da ingenuidade da democracia vulgar, que esperava uma vitória rápida e definitiva do povo, Marx e seus companheiros já compreendiam que haveria uma longa jornada pela frente. Previam que a derrota momentânea não significava fim, mas transição, e estavam certos. Ainda que acusados de traição pela esquerda romântica, resistiram com lucidez à ilusão e mostraram que, sem maturação das condições econômicas, a vitória da revolução socialista era impossível.
A história confirmou essa previsão, a grande indústria se consolidou após 1848 em toda a Europa. Alemanha, Hungria, Rússia e França entraram definitivamente na lógica capitalista moderna e a formação de uma burguesia e de um proletariados autênticos estava em curso. O antagonismo de classes ganhava nitidez, a luta, antes restrita a Paris e alguns centros industriais, se generalizava. E com isso, o campo de batalha da revolução se alargava.
Nos anos seguintes, o socialismo científico começava a tomar corpo como força histórica. As seitas e fórmulas mágicas perderam espaço. As massas trabalhadoras, antes dispersas e desorganizadas, formavam agora um exército internacional, articulado, consciente, disciplinado e crescente. Mesmo que a vitória não viesse com um só golpe, era inegável que o processo se tornara irreversível.
O golpe de Louis Bonaparte, em 1851, apenas confirmou a necessidade dessa maturação. Diante do impasse entre uma burguesia dividida e um proletariado ameaçador, o golpe garantiu a paz social à custa de repressão interna e guerras externas. Bismarck faria o mesmo mais tarde, com sua revolução "de cima". Mas ambos, ao eliminar as velhas formas políticas, abriram caminho para o amadurecimento da classe operária. A Comuna de Paris, em 1871, foi a prova final de que uma revolução só poderia ser proletária, mas também revelou que ainda não estávamos prontos. O povo francês não apoiou, a liderança se dividiu e a repressão venceu. Mesmo assim, a Comuna deixou sementes. Foi a partir dela que o movimento operário iniciou seu mais poderoso avanço.
A industrialização acelerada, os armamentos cada vez mais destrutivos, o custo crescente das guerras e da manutenção dos exércitos colocaram o povo contra a burguesia. O socialismo ganhava força na França, na Alemanha, na Itália, na Romênia. As derrotas já não freavam o avanço da consciência de classe, apenas o adiavam. O sufrágio universal, antes considerado armadilha pelos operários latinos, foi transformado pelos trabalhadores alemães em arma de combate. O voto, tratado como instrumento de dominação, passou a ser instrumento de emancipação. O Parlamento tornou-se tribuna para denunciar o sistema, ganhar força, medir apoio, conquistar espaços. A burguesia começou a temer mais o legalismo revolucionário do que a insurreição armada.
Mas também as condições para a insurreição haviam mudado. As barricadas românticas de 1848 não resistiriam à metralhadora moderna, as cidades se transformaram, as armas da tropa evoluíram. A logística militar ganhava eficiência. A repressão era mais rápida, precisa e letal. As chances de vitória num levante popular espontâneo diminuíam a cada década. Isso não significa que a luta de ruas esteja abolida. Apenas mostra que sua eficácia depende de novos fatores. Só será vitoriosa se vier no bojo de uma grande crise social, e com participação massiva e consciente. A rebelião por si só, como vanguarda isolada, perdeu sua força. A revolução exige agora um povo organizado e preparado.
O inimigo sabe disso, querendo nos forçar ao confronto violento, onde sabe que pode vencer. Mas o tempo da ingenuidade passou. Não se trata de fugir à luta, mas de escolhê-la no terreno mais favorável. Se querem guerra, que rompam eles mesmos a legalidade. Nós, fortalecidos dentro dela, sabemos que o tempo está a nosso favor. A história está cheia de ironias. Os revolucionários de ontem viraram conservadores. Os que gritam contra a subversão são os mesmos que fizeram golpes e anexações. A legalidade que hoje nos permite crescer foi criada por eles. E é ela que agora os sufoca. O Império Alemão, como todos os Estados modernos, nasceu de rupturas. Se eles romperem novamente, a história lhes cobrará o preço.
A lição deixada por Marx e Engels é clara. A revolução não é fruto do desejo, mas da necessidade. Ela não se impõe pela força de vontade de uma minoria, mas pelo amadurecimento da maioria. Exige paciência, estratégia, organização, persistência. E, sobretudo, exige que estejamos prontos quando a hora chegar.
A Luta de Classes na França (1848–1850)
Autor: Karl Marx
Ano de publicação original: 1850
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/index.htm
0 comments:
Postar um comentário