A obra Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico se tornar muito importante para os socialistas, ele nasceu de uma necessidade histórica. Lá em 1875, o Dr. Dühring, um professor da Universidade de Berlim, decidiu anunciar publicamente sua conversão ao socialismo e apresentar uma nova teoria para transformar a sociedade. Ele não trouxe apenas ideias, mas também um plano prático e detalhado, o que gerou debates intensos e conflitos, especialmente com Marx, que acabou sendo alvo das suas críticas mais duras.
Foi numa época em que o movimento socialista alemão estava se fortalecendo. As duas principais correntes socialistas tinham se unido, criando uma força capaz de enfrentar adversários comuns. Porém, para garantir essa unidade, era necessário evitar divisões internas. Dühring, ao propor suas ideias como base de um novo partido, ameaçava justamente essa coesão. Por isso, tornou-se inevitável um confronto teórico para preservar a força conquistada pelo movimento socialista.
Engels conta que, na Alemanha, existe uma tradição de aprofundar qualquer nova teoria até seus limites máximos. Não bastava discutir apenas pontos superficiais, era preciso apresentar um sistema filosófico e histórico completo, capaz de dialogar com todos os grandes temas da época, de questões filosóficas como tempo e espaço até discussões sobre economia, ciência, moral e até os rumos da sociedade futura. Ao responder, Engels pôde desenvolver, de maneira mais organizada, as ideias que ele e Marx já vinham defendendo sobre uma ampla gama de assuntos.
Essas reflexões foram inicialmente publicadas em artigos e, depois, reunidas em livro, que se tornou referência e foi traduzido para muitos idiomas. O sucesso internacional do livro só confirma a importância das ideias apresentadas para o movimento socialista mundial.
Um dos apêndices do livro trata da história da posse da terra na Alemanha, tema fundamental para entender como o capitalismo transformou relações sociais e econômicas ao longo dos séculos. Esse estudo foi considerado útil porque muitos trabalhadores urbanos que estavam se integrando ao movimento socialista, e era fundamental alcançar também os trabalhadores rurais, explicando como as formas de propriedade mudaram e por quê.
Sobre a economia, o livro traz uma explicação importante, a chamada “produção de mercadorias” é uma fase da história em que bens são produzidos não só para o uso pessoal, mas para serem trocados. Esse tipo de produção vai desde pequenas trocas até o desenvolvimento do capitalismo, onde o capitalista emprega trabalhadores que não possuem meios de produção próprios e vive da diferença entre o valor do que é produzido e os salários pagos. O livro divide o desenvolvimento industrial em três fases: artesanato (produção individual), manufatura (divisão do trabalho, produção coletiva) e indústria moderna (máquinas e grande escala).
Essa obra deixa claro que muitos britânicos teriam resistência a essas ideias porque o materialismo histórico, defendido por Marx e Engels, entra em choque com crenças religiosas e valores tradicionais muito presentes no Reino Unido. O termo “materialismo” costuma causar rejeição, mas a verdade é que o materialismo moderno, como forma de explicar o mundo e a história, surgiu justamente na Inglaterra, com pensadores como Bacon, Hobbes e Locke. O materialismo, resumidamente, entende que toda realidade se explica a partir da matéria e de suas transformações, não sendo necessário apelar para forças sobrenaturais ou explicações religiosas para entender o desenvolvimento social ou natural.
Marx escreveu sobre isso ao explicar que, para Bacon, o conhecimento vinha dos sentidos e da experiência, o que depois foi aprofundado por Hobbes e Locke. Hobbes, acreditava que tudo que pensamos são apenas impressões do mundo real captadas pelos sentidos. Locke foi além e demonstrou como nossas ideias se originam das experiências sensoriais. A tradição materialista foi sendo refinada ao longo dos séculos, eliminando aos poucos as influências teológicas que ainda restavam.
O livro também analisa o agnosticismo, muito comum entre intelectuais britânicos da época. O agnóstico acredita que não se pode provar nem negar a existência de um ser supremo. Engels argumenta que, apesar de o agnosticismo parecer uma posição de equilíbrio, no dia a dia até mesmo os agnósticos acabam agindo como materialistas, já que admitem que todas as coisas funcionam de acordo com leis naturais, sem precisar de interferência divina.
Outro ponto importante é a crítica à ideia de que não podemos conhecer a “coisa em si”, como dizia Kant. O texto explica que, à medida que a ciência avança, vai revelando a estrutura de coisas que antes pareciam misteriosas, como as substâncias orgânicas, mostrando que o avanço do conhecimento é capaz de superar antigos limites filosóficos.
A partir daí, o livro defende o conceito de materialismo histórico, ou seja, a ideia de que os grandes acontecimentos históricos são resultado das transformações econômicas, das mudanças nos modos de produção e das lutas entre classes sociais. Isso significa que a história não é movida por ideias ou crenças isoladas, mas pelas condições materiais de vida e pelas relações de produção.
Engels faz então um percurso histórico para mostrar como a ascensão da burguesia na Europa foi, acima de tudo, resultado de mudanças econômicas que colocaram essa classe em confronto com o sistema feudal, cujo maior símbolo era a Igreja Católica. Para conquistar espaço, a burguesia precisou enfrentar a Igreja, que era a grande força unificadora do feudalismo e detentora de imenso poder político e econômico.
O livro destaca que a luta da burguesia contra o feudalismo assumiu, em vários momentos, a forma de uma luta religiosa. Isso aconteceu durante a Reforma Protestante, quando Lutero rompeu com a Igreja e iniciou um movimento que, além das transformações religiosas, trouxe disputas políticas, envolvendo nobres, camponeses e cidades. No entanto, foi com Calvino, na Suíça, que o pensamento religioso se tornou um instrumento revolucionário para a burguesia, especialmente porque a doutrina calvinista valorizava o sucesso econômico como sinal de predestinação.
O livro lembra também a Revolução Inglesa, em que a burguesia urbana, aliada aos camponeses, conseguiu desafiar o poder monárquico e fundar a república por um breve período. Mas vale refletir que mesmo após essas vitórias, o campesinato, que foi fundamental para o triunfo, acabou sendo prejudicado com o avanço do capitalismo.
A Revolução Francesa é tratada como o momento decisivo em que a burguesia finalmente rompeu com os laços religiosos e travou uma luta política aberta, destruindo a aristocracia feudal e implementando reformas que serviram de modelo para o resto do mundo. O Código Civil francês, criado nesse período, representa um marco da adaptação das leis às necessidades do capitalismo, servindo de exemplo até hoje.
Ao analisar a Inglaterra, o livro mostra que, após séculos de disputas, a burguesia acabou se aliando à aristocracia remanescente, formando uma nova elite que manteve o poder político e econômico. Mesmo assim, a burguesia tinha que lidar com o desafio de controlar as massas trabalhadoras, e para isso usou a religião como instrumento de disciplina social. O texto aponta que a classe média valorizava a religião não só por convicção, mas porque ela servia para garantir obediência e estabilidade entre os trabalhadores.
A chegada do materialismo à Inglaterra assustou parte da burguesia, pois representava uma ameaça à ordem estabelecida. Por isso, muitas vezes o materialismo foi visto como doutrina de intelectuais e aristocratas, distante das massas, enquanto as seitas protestantes forneceram à burguesia o apoio ideológico para manter sua hegemonia.
O livro segue mostrando que, mesmo com todas as vitórias, a burguesia europeia jamais conseguiu um domínio absoluto e duradouro como o da aristocracia feudal. Sempre houve pressões internas, mudanças econômicas e, principalmente, o surgimento de uma nova classe social: o operariado. A Revolução Industrial criou uma massa de trabalhadores urbanos que, com o tempo, se organizou politicamente e passou a lutar por seus direitos, como aconteceu com o movimento cartista na Inglaterra e com as insurreições operárias de 1848 na Europa continental.
Mesmo diante desses movimentos, a burguesia inglesa continuou a apostar na religião e em outras formas de controle moral para manter os trabalhadores sob controle, investindo em campanhas religiosas e importando até práticas dos Estados Unidos para revitalizar a fé entre as classes populares.
Engels observa que essas estratégias têm efeito limitado. As ideias dominantes, sejam religiosas ou jurídicas, refletem as condições econômicas de cada época, e mudam quando as bases materiais da sociedade se transformam. Isso significa que nenhuma ideia religiosa, por mais forte que pareça, pode sustentar uma sociedade em crise permanente.
Nos últimos trechos do livro, ele reconhece que o operariado inglês, mesmo preso a velhas tradições e a um sistema político restrito, começou a se mover novamente. O avanço pode ser lento, com idas e vindas, mas é constante e, à medida que as novas gerações vão entrando na luta, cresce a possibilidade de conquistas reais para a classe trabalhadora.
E além, Engels destaca que o triunfo do movimento operário na Europa depende da cooperação entre trabalhadores de diferentes países. Em lugares como Alemanha e França, o movimento socialista avança rapidamente. Diante disso, ele sugere que não seria impossível que a Alemanha, que já foi o centro da primeira revolta burguesa, venha a ser também o palco da primeira grande vitória do proletariado.
Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico
Autor: Friederich Engels
Ano de publicação original: 1880
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/index.htm