Como surgiram a família, a propriedade privada e o Estado?

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado

 

No presente texto que você vai ler só funcionam, de certa forma, como um testamento intelectual. Marx pretendia apresentar pessoalmente os resultados das pesquisas feitas por Lewis Henry Morgan, relacionando-as com as suas próprias ideias sobre a história baseada na análise materialista. Só assim seria possível mostrar todo o significado dessas descobertas. Morgan, lá na América, reencontrou, de modo próprio, a ideia materialista da história, aquela que Marx já havia formulado quarenta anos antes e, partindo dela, chegou a conclusões muito parecidas com as de Marx, contrapondo a barbárie e a civilização. É importante notar que os especialistas em pré-história na Inglaterra reagiram à obra "Ancient Society" de Morgan do mesmo jeito que os economistas oficiais da Alemanha reagiram a "O Capital" de Marx. Tentaram copiar, mas também tentaram silenciar essas ideias. O presente trabalho aqui não substitui o que Marx ainda não conseguiu escrever, mas à disposição os trechos detalhados que ele retirou do livro de Morgan e também suas anotações críticas, colocadas no presente texto, sempre que forem importantes.

Segundo a ideia materialista da história, o que realmente importa no desenvolvimento da sociedade é a produção e a reprodução da vida cotidiana. Essa produção acontece de duas formas: primeiro, na fabricação das coisas necessárias para viver como comida, roupas, casas e ferramentas, e segundo, na reprodução das pessoas, ou seja, na continuação da espécie humana. A forma como a sociedade é organizada em um determinado momento depende dessas duas formas de produção: o quanto o trabalho está desenvolvido e como a família funciona. Quanto menos desenvolvido for o trabalho, menos produtos a sociedade terá, e, por isso, a riqueza será menor. Nesse cenário, os laços de parentesco, as relações familiares e de sangue, terão um papel muito mais forte na organização social. Porém, mesmo dentro dessa estrutura baseada em parentesco, a produtividade do trabalho vai crescendo, o que leva ao surgimento da propriedade privada, das trocas comerciais, das diferenças de riqueza, e da possibilidade de alguém explorar o trabalho de outra pessoa. Esses novos fatores criam tensões entre grupos sociais, os chamados antagonismos de classe. Ao longo das gerações, esses novos grupos tentam adaptar a antiga organização social às novas condições, mas essa adaptação não funciona para sempre. Chega um momento em que a incompatibilidade entre as velhas formas e as novas condições provoca uma revolução completa. A antiga sociedade, organizada em grupos familiares chamados de uniões gentílicas, desaparece. No lugar dela surge uma nova sociedade, organizada em Estado, onde as unidades menores não são mais grupos de parentesco, mas territórios. Nessa nova sociedade, a família já está subordinada às relações de propriedade, e a luta entre classes sociais passa a ser o motor da história, o que continua até hoje.

O grande mérito de Lewis Henry Morgan foi descobrir e recuperar essa base pré-histórica que sustenta toda a nossa história escrita. Ele encontrou nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos a chave para entender enigmas muito importantes ainda não explicados da história antiga da Grécia, Roma e Alemanha. Morgan não fez esse trabalho do dia para a noite, foram cerca de quarenta anos reunindo dados até dominar o tema completamente. E seu esforço valeu a pena, porque seu livro é uma das obras mais importantes do nosso tempo.

No que Engels acrescenta a seguir, você vai perceber facilmente o que é ideia de Morgan e o que foram acrescentados. Nos capítulos sobre a história da Grécia e Roma, não foram limitados a repetir o que Morgan escreveu, mas foram incluídos todos os dados que tinha disponíveis. A parte sobre celtas e germanos é basicamente de Engels, porque os documentos de Morgan sobre esses povos eram indiretos; sobre os germanos, além dos escritos de Tácito, só havia falsificações ruins feitas por estudiosos liberais como o senhor Edward Augustus Freeman. Por isso, foram necessários refazer toda a análise econômica dessa parte, que, embora fosse suficiente para Morgan, não atendia aos objetivos.


A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado
Autores: Friedrich Engels
Ano de publicação original: 1884
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1884/origem/index.htm

Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico

Karl Marx e Friederich Engels


A obra Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico se tornar muito importante para os socialistas, ele nasceu de uma necessidade histórica. Lá em 1875, o Dr. Dühring, um professor da Universidade de Berlim, decidiu anunciar publicamente sua conversão ao socialismo e apresentar uma nova teoria para transformar a sociedade. Ele não trouxe apenas ideias, mas também um plano prático e detalhado, o que gerou debates intensos e conflitos, especialmente com Marx, que acabou sendo alvo das suas críticas mais duras.

Foi numa época em que o movimento socialista alemão estava se fortalecendo. As duas principais correntes socialistas tinham se unido, criando uma força capaz de enfrentar adversários comuns. Porém, para garantir essa unidade, era necessário evitar divisões internas. Dühring, ao propor suas ideias como base de um novo partido, ameaçava justamente essa coesão. Por isso, tornou-se inevitável um confronto teórico para preservar a força conquistada pelo movimento socialista.

Engels conta que, na Alemanha, existe uma tradição de aprofundar qualquer nova teoria até seus limites máximos. Não bastava discutir apenas pontos superficiais, era preciso apresentar um sistema filosófico e histórico completo, capaz de dialogar com todos os grandes temas da época, de questões filosóficas como tempo e espaço até discussões sobre economia, ciência, moral e até os rumos da sociedade futura. Ao responder, Engels pôde desenvolver, de maneira mais organizada, as ideias que ele e Marx já vinham defendendo sobre uma ampla gama de assuntos.

Essas reflexões foram inicialmente publicadas em artigos e, depois, reunidas em livro, que se tornou referência e foi traduzido para muitos idiomas. O sucesso internacional do livro só confirma a importância das ideias apresentadas para o movimento socialista mundial.

Um dos apêndices do livro trata da história da posse da terra na Alemanha, tema fundamental para entender como o capitalismo transformou relações sociais e econômicas ao longo dos séculos. Esse estudo foi considerado útil porque muitos trabalhadores urbanos que estavam se integrando ao movimento socialista, e era fundamental alcançar também os trabalhadores rurais, explicando como as formas de propriedade mudaram e por quê.

Sobre a economia, o livro traz uma explicação importante, a chamada “produção de mercadorias” é uma fase da história em que bens são produzidos não só para o uso pessoal, mas para serem trocados. Esse tipo de produção vai desde pequenas trocas até o desenvolvimento do capitalismo, onde o capitalista emprega trabalhadores que não possuem meios de produção próprios e vive da diferença entre o valor do que é produzido e os salários pagos. O livro divide o desenvolvimento industrial em três fases: artesanato (produção individual), manufatura (divisão do trabalho, produção coletiva) e indústria moderna (máquinas e grande escala).

Essa obra deixa claro que muitos britânicos teriam resistência a essas ideias porque o materialismo histórico, defendido por Marx e Engels, entra em choque com crenças religiosas e valores tradicionais muito presentes no Reino Unido. O termo “materialismo” costuma causar rejeição, mas a verdade é que o materialismo moderno, como forma de explicar o mundo e a história, surgiu justamente na Inglaterra, com pensadores como Bacon, Hobbes e Locke. O materialismo, resumidamente, entende que toda realidade se explica a partir da matéria e de suas transformações, não sendo necessário apelar para forças sobrenaturais ou explicações religiosas para entender o desenvolvimento social ou natural.

Marx escreveu sobre isso ao explicar que, para Bacon, o conhecimento vinha dos sentidos e da experiência, o que depois foi aprofundado por Hobbes e Locke. Hobbes, acreditava que tudo que pensamos são apenas impressões do mundo real captadas pelos sentidos. Locke foi além e demonstrou como nossas ideias se originam das experiências sensoriais. A tradição materialista foi sendo refinada ao longo dos séculos, eliminando aos poucos as influências teológicas que ainda restavam.

O livro também analisa o agnosticismo, muito comum entre intelectuais britânicos da época. O agnóstico acredita que não se pode provar nem negar a existência de um ser supremo. Engels argumenta que, apesar de o agnosticismo parecer uma posição de equilíbrio, no dia a dia até mesmo os agnósticos acabam agindo como materialistas, já que admitem que todas as coisas funcionam de acordo com leis naturais, sem precisar de interferência divina.

Outro ponto importante é a crítica à ideia de que não podemos conhecer a “coisa em si”, como dizia Kant. O texto explica que, à medida que a ciência avança, vai revelando a estrutura de coisas que antes pareciam misteriosas, como as substâncias orgânicas, mostrando que o avanço do conhecimento é capaz de superar antigos limites filosóficos.

A partir daí, o livro defende o conceito de materialismo histórico, ou seja, a ideia de que os grandes acontecimentos históricos são resultado das transformações econômicas, das mudanças nos modos de produção e das lutas entre classes sociais. Isso significa que a história não é movida por ideias ou crenças isoladas, mas pelas condições materiais de vida e pelas relações de produção.

Engels faz então um percurso histórico para mostrar como a ascensão da burguesia na Europa foi, acima de tudo, resultado de mudanças econômicas que colocaram essa classe em confronto com o sistema feudal, cujo maior símbolo era a Igreja Católica. Para conquistar espaço, a burguesia precisou enfrentar a Igreja, que era a grande força unificadora do feudalismo e detentora de imenso poder político e econômico.

O livro destaca que a luta da burguesia contra o feudalismo assumiu, em vários momentos, a forma de uma luta religiosa. Isso aconteceu durante a Reforma Protestante, quando Lutero rompeu com a Igreja e iniciou um movimento que, além das transformações religiosas, trouxe disputas políticas, envolvendo nobres, camponeses e cidades. No entanto, foi com Calvino, na Suíça, que o pensamento religioso se tornou um instrumento revolucionário para a burguesia, especialmente porque a doutrina calvinista valorizava o sucesso econômico como sinal de predestinação.

O livro lembra também a Revolução Inglesa, em que a burguesia urbana, aliada aos camponeses, conseguiu desafiar o poder monárquico e fundar a república por um breve período. Mas vale refletir que mesmo após essas vitórias, o campesinato, que foi fundamental para o triunfo, acabou sendo prejudicado com o avanço do capitalismo.

A Revolução Francesa é tratada como o momento decisivo em que a burguesia finalmente rompeu com os laços religiosos e travou uma luta política aberta, destruindo a aristocracia feudal e implementando reformas que serviram de modelo para o resto do mundo. O Código Civil francês, criado nesse período, representa um marco da adaptação das leis às necessidades do capitalismo, servindo de exemplo até hoje.

Ao analisar a Inglaterra, o livro mostra que, após séculos de disputas, a burguesia acabou se aliando à aristocracia remanescente, formando uma nova elite que manteve o poder político e econômico. Mesmo assim, a burguesia tinha que lidar com o desafio de controlar as massas trabalhadoras, e para isso usou a religião como instrumento de disciplina social. O texto aponta que a classe média valorizava a religião não só por convicção, mas porque ela servia para garantir obediência e estabilidade entre os trabalhadores.

A chegada do materialismo à Inglaterra assustou parte da burguesia, pois representava uma ameaça à ordem estabelecida. Por isso, muitas vezes o materialismo foi visto como doutrina de intelectuais e aristocratas, distante das massas, enquanto as seitas protestantes forneceram à burguesia o apoio ideológico para manter sua hegemonia.

O livro segue mostrando que, mesmo com todas as vitórias, a burguesia europeia jamais conseguiu um domínio absoluto e duradouro como o da aristocracia feudal. Sempre houve pressões internas, mudanças econômicas e, principalmente, o surgimento de uma nova classe social: o operariado. A Revolução Industrial criou uma massa de trabalhadores urbanos que, com o tempo, se organizou politicamente e passou a lutar por seus direitos, como aconteceu com o movimento cartista na Inglaterra e com as insurreições operárias de 1848 na Europa continental.

Mesmo diante desses movimentos, a burguesia inglesa continuou a apostar na religião e em outras formas de controle moral para manter os trabalhadores sob controle, investindo em campanhas religiosas e importando até práticas dos Estados Unidos para revitalizar a fé entre as classes populares.

Engels observa que essas estratégias têm efeito limitado. As ideias dominantes, sejam religiosas ou jurídicas, refletem as condições econômicas de cada época, e mudam quando as bases materiais da sociedade se transformam. Isso significa que nenhuma ideia religiosa, por mais forte que pareça, pode sustentar uma sociedade em crise permanente.

Nos últimos trechos do livro, ele reconhece que o operariado inglês, mesmo preso a velhas tradições e a um sistema político restrito, começou a se mover novamente. O avanço pode ser lento, com idas e vindas, mas é constante e, à medida que as novas gerações vão entrando na luta, cresce a possibilidade de conquistas reais para a classe trabalhadora.

E além, Engels destaca que o triunfo do movimento operário na Europa depende da cooperação entre trabalhadores de diferentes países. Em lugares como Alemanha e França, o movimento socialista avança rapidamente. Diante disso, ele sugere que não seria impossível que a Alemanha, que já foi o centro da primeira revolta burguesa, venha a ser também o palco da primeira grande vitória do proletariado.

Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico
Autor: Friederich Engels
Ano de publicação original: 1880
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/index.htm

A luta de classes na França

Cérebro, evolução, comportamento

Se no Manifesto Comunista a teoria aparece de maneira geral, neste texto de Marx ela se debruça sobre um ciclo específico de acontecimentos, buscando mostrar a engrenagem real por trás dos fatos políticos: a economia. O que se vê não é o acaso da história, mas a manifestação visível de causas estruturais, de forças que atuam por baixo da superfície. Analisar a história no calor dos fatos é tarefa ingrata. Mesmo hoje, com acesso facilitado a dados e estatísticas, é difícil traçar um panorama econômico completo de um período específico. Os fatores se sobrepõem, interagem, mudam rapidamente, e os mais decisivos muitas vezes operam em silêncio, tornando-se visíveis só depois que seus efeitos explodem. Assim, é comum que as análises precisem assumir como constantes certas condições econômicas ou apenas considerar as transformações mais evidentes. Isso não é defeito do método materialista, mas limitação imposta pelo próprio tempo histórico em que se escreve.

Ao escrever sobre os anos de 1848 a 1850, Marx o faz num contexto de exílio e escassez de informações, mas com profunda compreensão da realidade política e econômica da França. A Revolução de Fevereiro e os desdobramentos que se seguiram foram abordados com precisão impressionante. Ainda que com lacunas materiais, a análise mostrou uma conexão coerente e profunda entre os acontecimentos, provando a validade do método.

Essa interpretação recebeu sua primeira confirmação quando Marx, em 1850, teve a oportunidade de aprofundar seus estudos econômicos. Constatou que a crise comercial de 1847 foi o estopim das revoluções que se espalharam por toda a Europa. E quando a economia voltou a crescer em 1849, a reação conservadora também se fortaleceu. Essa constatação levou a uma revisão crítica do entusiasmo revolucionário. A luta ainda estava viva, mas seria longa. O retorno à estabilidade econômica não significava a derrota definitiva, mas um novo compasso da luta de classes.

A segunda prova da análise de Marx veio com o golpe de Estado de Louis Bonaparte, em 1851. Ao recontar a história recente no 18 de Brumário, Marx reviu o mesmo período com a perspectiva do desfecho político. E mesmo assim, sua análise anterior permaneceu praticamente intacta. O essencial não mudou. O texto de 1850 já havia captado os elementos decisivos.

Mais do que uma leitura correta dos fatos, esse texto tem uma importância histórica: nele aparece, pela primeira vez, a fórmula que resume a luta dos trabalhadores de todo o mundo, a apropriação dos meios de produção pela sociedade. Por trás do direito ao trabalho está o controle sobre o capital, e por trás disso, a abolição do trabalho assalariado. Essa ideia, simples em aparência, representa uma ruptura com todas as formas anteriores de socialismo. Rompe com os devaneios utópicos e com os paliativos reformistas, apontando para uma transformação radical da sociedade.

Em 1848, todos acreditávamos que o novo levante anunciava a hora da revolução socialista. A lembrança de 1789, 1830 e 1840 ainda era forte. O povo de Paris erguia barricadas e, rapidamente, as insurreições se espalhavam por Viena, Milão, Berlim. Parecia o início do desfecho. Mas mesmo com batalhas como a de junho, entre burguesia e proletariado, a história nos mostraria que ainda estávamos no começo do processo.

Ao contrário da ingenuidade da democracia vulgar, que esperava uma vitória rápida e definitiva do povo, Marx e seus companheiros já compreendiam que haveria uma longa jornada pela frente. Previam que a derrota momentânea não significava fim, mas transição, e estavam certos. Ainda que acusados de traição pela esquerda romântica, resistiram com lucidez à ilusão e mostraram que, sem maturação das condições econômicas, a vitória da revolução socialista era impossível.

A história confirmou essa previsão, a grande indústria se consolidou após 1848 em toda a Europa. Alemanha, Hungria, Rússia e França entraram definitivamente na lógica capitalista moderna e a formação de uma burguesia e de um proletariados autênticos estava em curso. O antagonismo de classes ganhava nitidez, a luta, antes restrita a Paris e alguns centros industriais, se generalizava. E com isso, o campo de batalha da revolução se alargava.

Nos anos seguintes, o socialismo científico começava a tomar corpo como força histórica. As seitas e fórmulas mágicas perderam espaço. As massas trabalhadoras, antes dispersas e desorganizadas, formavam agora um exército internacional, articulado, consciente, disciplinado e crescente. Mesmo que a vitória não viesse com um só golpe, era inegável que o processo se tornara irreversível.

O golpe de Louis Bonaparte, em 1851, apenas confirmou a necessidade dessa maturação. Diante do impasse entre uma burguesia dividida e um proletariado ameaçador, o golpe garantiu a paz social à custa de repressão interna e guerras externas. Bismarck faria o mesmo mais tarde, com sua revolução "de cima". Mas ambos, ao eliminar as velhas formas políticas, abriram caminho para o amadurecimento da classe operária. A Comuna de Paris, em 1871, foi a prova final de que uma revolução só poderia ser proletária, mas também revelou que ainda não estávamos prontos. O povo francês não apoiou, a liderança se dividiu e a repressão venceu. Mesmo assim, a Comuna deixou sementes. Foi a partir dela que o movimento operário iniciou seu mais poderoso avanço.

A industrialização acelerada, os armamentos cada vez mais destrutivos, o custo crescente das guerras e da manutenção dos exércitos colocaram o povo contra a burguesia. O socialismo ganhava força na França, na Alemanha, na Itália, na Romênia. As derrotas já não freavam o avanço da consciência de classe, apenas o adiavam. O sufrágio universal, antes considerado armadilha pelos operários latinos, foi transformado pelos trabalhadores alemães em arma de combate. O voto, tratado como instrumento de dominação, passou a ser instrumento de emancipação. O Parlamento tornou-se tribuna para denunciar o sistema, ganhar força, medir apoio, conquistar espaços. A burguesia começou a temer mais o legalismo revolucionário do que a insurreição armada.

Mas também as condições para a insurreição haviam mudado. As barricadas românticas de 1848 não resistiriam à metralhadora moderna, as cidades se transformaram, as armas da tropa evoluíram. A logística militar ganhava eficiência. A repressão era mais rápida, precisa e letal. As chances de vitória num levante popular espontâneo diminuíam a cada década. Isso não significa que a luta de ruas esteja abolida. Apenas mostra que sua eficácia depende de novos fatores. Só será vitoriosa se vier no bojo de uma grande crise social, e com participação massiva e consciente. A rebelião por si só, como vanguarda isolada, perdeu sua força. A revolução exige agora um povo organizado e preparado.

O inimigo sabe disso, querendo nos forçar ao confronto violento, onde sabe que pode vencer. Mas o tempo da ingenuidade passou. Não se trata de fugir à luta, mas de escolhê-la no terreno mais favorável. Se querem guerra, que rompam eles mesmos a legalidade. Nós, fortalecidos dentro dela, sabemos que o tempo está a nosso favor. A história está cheia de ironias. Os revolucionários de ontem viraram conservadores. Os que gritam contra a subversão são os mesmos que fizeram golpes e anexações. A legalidade que hoje nos permite crescer foi criada por eles. E é ela que agora os sufoca. O Império Alemão, como todos os Estados modernos, nasceu de rupturas. Se eles romperem novamente, a história lhes cobrará o preço.

A lição deixada por Marx e Engels é clara. A revolução não é fruto do desejo, mas da necessidade. Ela não se impõe pela força de vontade de uma minoria, mas pelo amadurecimento da maioria. Exige paciência, estratégia, organização, persistência. E, sobretudo, exige que estejamos prontos quando a hora chegar.


A Luta de Classes na França (1848–1850)
Autor: Karl Marx
Ano de publicação original: 1850
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/index.htm

O que os comunistas defendem?

Comunistas


Os comunistas não surgem como mais um partido entre os muitos que compõem o espectro da classe trabalhadora. Eles não defendem interesses particulares ou próprios, mas sim os interesses gerais de todos os trabalhadores. Não tentam impor nenhuma doutrina inventada ou teoria abstrata. Eles se guiam pela realidade concreta da luta de classes, por aquilo que já está acontecendo no mundo material.

O que os diferencia dos outros grupos é o fato de que, enquanto outros se perdem em questões locais ou nacionais, os comunistas olham para o quadro geral. Pensam de forma internacional, enxergam os pontos em comum da luta operária, estejam os trabalhadores na Alemanha, na França ou em qualquer outro lugar. E mais que isso, eles compreendem com profundidade o movimento histórico dessa luta entre capitalistas e trabalhadores. Têm uma clareza teórica que lhes permite ver os caminhos e os resultados dessa batalha.

O objetivo imediato dos comunistas não difere do objetivo de qualquer trabalhador consciente: organizar a classe operária, derrubar o poder da burguesia e conquistar o poder político para que os trabalhadores possam construir uma nova sociedade.

Mas o que fundamenta as ideias comunistas? São invenções?

Não. As ideias comunistas não foram criadas num gabinete por teóricos isolados do mundo. Elas são fruto da observação das relações reais da sociedade. São a expressão teórica do conflito entre exploradores e explorados, entre quem detém os meios de produção e quem só possui sua força de trabalho para sobreviver.

A abolição da propriedade privada burguesa, a base do comunismo, não é algo arbitrário. Trata-se de uma consequência lógica do próprio desenvolvimento histórico. A história sempre foi marcada por mudanças nas formas de propriedade. A Revolução Francesa, por exemplo, acabou com a propriedade feudal para dar lugar à propriedade burguesa. Agora, o passo seguinte é transformar essa propriedade burguesa em algo novo, que não dependa da exploração.

A propriedade privada é injusta? E a propriedade do pequeno trabalhador?

Quando os comunistas falam em abolir a propriedade privada, estão se referindo à propriedade burguesa. Aquela que se baseia na exploração do trabalho de outros. Não estamos falando da pequena propriedade do camponês ou do artesão, que já foi eliminada, pouco a pouco, pelo avanço da indústria.

E quando se trata do trabalhador assalariado moderno, a verdade é ainda mais crua: ele não é dono de nada. O que ele produz não gera para si uma propriedade real, mas sim para o patrão. Ele vive para sustentar o capital, não para viver com dignidade. A tal liberdade de “ganhar o próprio sustento” se resume a manter a máquina funcionando, máquina essa que pertence a outro.

E o capital? O que ele representa?

O capital não é apenas dinheiro ou propriedade. É um poder social, um produto coletivo, movimentado por muitas pessoas. Quando se diz que o capital deve ser transformado em propriedade coletiva, não se está falando em eliminar a propriedade pessoal no sentido de bens individuais, mas em retirar dela seu caráter de classe.

O capital hoje dá poder a poucos sobre o trabalho de muitos. O comunismo busca romper essa lógica: que o trabalho acumulado (ou seja, os bens, as máquinas, o conhecimento) sirva ao bem-estar de todos e não para enriquecer uns poucos.

Isso não seria uma forma de acabar com a liberdade?


A burguesia se apega a uma ideia de liberdade que está presa ao comércio e à propriedade. Mas essa liberdade é ilusória: ela só existe para quem tem capital. Para a maioria da população, liberdade significa apenas escolher entre diferentes formas de ser explorado.

Os comunistas querem abolir essa falsa liberdade. Não querem acabar com a individualidade, mas sim com a dominação de classe que a impede de florescer de verdade. Quando se diz que os comunistas querem acabar com a “liberdade”, o que está se dizendo é que querem acabar com a liberdade dos burgueses de explorar.

E quanto à cultura, à moral, à religião?

Todas essas ideias que nos parecem eternas, como moral, justiça, propriedade, religião, são, na verdade, produtos de uma sociedade específica. Elas nascem das condições materiais e dos interesses das classes dominantes de cada época.

A moral da sociedade atual é a moral burguesa. A cultura exaltada é a cultura da elite. A religião, muitas vezes, funciona como forma de justificar a submissão. O comunismo não elimina ideias por capricho, mas porque a nova sociedade que propõe exige uma nova forma de pensar, de sentir e de agir. As ideias dominantes de uma época são sempre as ideias da classe dominante. Quando essa classe cai, suas ideias também perdem o chão.

E a família? Os comunistas querem acabar com ela?

A crítica aqui é direta: a família burguesa, aquela baseada na propriedade e no poder do homem sobre a mulher e os filhos, não é sagrada nem natural. Ela só é possível porque existe a exploração. O trabalhador mal consegue sustentar a própria família, enquanto a burguesia transforma mulheres e crianças em instrumentos de lucro.

Os comunistas não querem destruir os laços afetivos. Querem, sim, acabar com o modelo de família baseado na desigualdade e na hipocrisia. Não são os comunistas que promovem a “comunidade de mulheres”, mas sim a própria sociedade burguesa, com sua prostituição oficial e oficiosa, com seus casamentos por interesse, com sua moral dupla.

E quanto à pátria, à nacionalidade?


Os trabalhadores não têm pátria. Eles não possuem nada que os prenda a uma nação, pois são explorados onde quer que estejam. O nacionalismo, na forma como é usado pela burguesia, serve apenas para dividir a classe trabalhadora e proteger os interesses do capital.

Os comunistas defendem a união internacional dos trabalhadores. Sabem que a exploração entre nações reflete a mesma lógica da exploração entre classes. Por isso, a libertação do proletariado só pode ocorrer se ultrapassar fronteiras.

Mas e as acusações filosóficas e morais contra o comunismo?

Muitos argumentam que o comunismo quer destruir valores eternos, como a justiça ou a liberdade. Mas a história mostra que esses valores sempre mudaram conforme as condições materiais de cada época.

A liberdade feudal não é a mesma da burguesia. O que hoje se chama de liberdade não será o mesmo numa sociedade futura. A ideia de que existem verdades imutáveis é parte do discurso das classes dominantes, que querem fazer parecer naturais suas próprias regras.

A revolução comunista rompe com essas ilusões, assim como rompe com as estruturas que as sustentam. É a ruptura mais profunda já proposta na história da humanidade, pois atinge não só a economia, mas também a forma de pensar.

O que fazer para transformar essa sociedade?

O primeiro passo da revolução comunista é simples: colocar o proletariado no poder. Isso significa que os trabalhadores organizados devem se tornar a classe dominante, usar esse poder para retirar gradualmente os meios de produção da burguesia e colocá-los nas mãos da coletividade.

Esse processo exige medidas firmes, que podem parecer duras ou utópicas à primeira vista, mas necessárias para mudar radicalmente o sistema:

Expropriar as terras e usar os lucros em benefício do povo.


Criar impostos progressivos para redistribuir riqueza.


Acabar com o direito de herança, que perpetua privilégios.


Confiscar os bens de quem se opõe violentamente à revolução.

Centralizar o sistema bancário nas mãos do Estado.

Controlar os transportes coletivos e infraestrutura.

Expandir fábricas e a produção de forma planejada.


Garantir trabalho para todos, inclusive com exércitos industriais agrícolas.

Unificar o campo e a cidade, superando desigualdades regionais.


Oferecer educação pública, gratuita e integrada ao trabalho.

E depois disso?


Com o tempo, essas medidas dissolverão as diferenças entre as classes sociais. O Estado, que hoje é o instrumento de dominação de uma classe sobre a outra, deixará de existir como tal. Quando não houver mais classes para oprimir, o poder político, como conhecemos, perderá sua razão de ser. No lugar dessa sociedade dividida e opressora, surgirá uma nova forma de convivência humana. Uma sociedade em que o desenvolvimento de cada indivíduo se tornará a base do progresso de todos. Onde a liberdade não será um privilégio, mas uma condição universal. 


Manifesto do Partido Comunista
Autores: Karl Marx e Friedrich Engels
Ano de publicação original: 1848
Fonte: https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/index.htm